DestaqueMinho

Caminho de Santiago com novas regras, mas com a mesma magia

Uma chinesa que se converteu; uma jovem que ‘se refugiou’ para fugir ao DAESH; um alemão condenado e um agnóstico que acabou o caminho de Santiago a assistir a uma missa. São muitas as histórias à volta dos Caminhos de Santiago. Seis mil pessoas pediram uma credencial à Associação Espaço Jacobeus (AEJ) com sede em Braga, para irem a Santiago de Compostela a pé em 2019. “Começa-se caminhante acaba-se peregrino”, dizem ao ‘Terras do Homem’, Nuno Pontes e António Devesa da AEJ.

A ‘magia’ de percorrer os Caminhos de Santiago não se expressa, sente-se. Por isso, é democrático: “há pessoas de todas as idades, de todas as raças, de todas as ideologias, de todos os sexos a percorrerem o caminho”, refere o presidente da AEJ, Nuno Pontes. “Há quem o faça por aventura, por questões espirituais ou por desporto”, acrescenta António Devesa, da direção, mas acabam todos da mesma forma: “peregrinos”.

A história de uma chinesa ajuda a perceber o que pode ser o Caminho: num dos percursos do caminho francês, chorava copiosamente. Foi difícil entender o que queria: converter-se. Sim, precisava de falar com um padre. Tarefa complicada porque o pároco, de muitas paróquias, se encontrava a 70 quilómetros de distância. Aceitou fazer o percurso seguinte com a garantia que era recebida por um padre. Enquanto todos continuaram a sua caminhada, ela lá ficou: a converter-se.

Pandemia

O recomeço ainda é uma incógnita. Mas de uma coisa se tem a certeza: já há mais de 100 pedidos de credencial emitidos a quem, depois do confinamento, precisa de se encontrar seja consigo próprio, seja com a natureza, seja com os outros. “Quando abrirem as fronteiras, haverá uma afluência excessiva, a sede será tanta que o caminho vai ficar a abarrotar”, reconhece Nuno Pontes.

Há mais um pormenor a levar em conta daqui para a frente: “será preciso fazer marcação dos albergues porque a capacidade será reduzida”. E se, no antes da pandemia, o espaço dava para quase todos, no pós-pandemia tudo será diferente. Ou quase tudo.

A insistência de um cidadão alemão em encontrar um polícia era incompreensível por todos aqueles que se encontravam no caminho. A dificuldade na expressão tornava as coisas ainda mais tensas. A credencial na mão e a palavra, repetida vezes sem conta, ‘stamp, stamp’ (carimbo) não ajudavam em nada. Com calma, lá se conseguiu perceber que o alemão, condenado a fazer o caminho de Santiago, tinha que carimbar a sua passagem por todas as vilas e cidades para não ser preso.

Aliás, este tipo de pena, caminhar até Santiago durante um período de tempo, começa a ser muito usual em países do norte e centro da Europa.

Seis mil pedidos

Para fazer o caminho é obrigatório ter uma credencial, sem a qual não se tem acesso aos albergues, por exemplo. A AEJ tem 500 associados e 17 delegações, incluindo em Itália. Para além de Vila Verde e Amares, há representantes em Faro, Açores, Madeira, Lisboa, Coimbra., Fátima, Porto, Felgueiras, Amarante, Braga, Guimarães e Barcelos, entre outros e em todas elas se pode pedir a credencial.

“Os seis mil pedidos de credencial, no ano passado, referem-se aos pedidos que chegaram através do nosso site ou diretamente na sede”, esclarece Nuno Pontes. Portanto, “poderá haver milhares de outros peregrinos que façam o caminho pedindo a credencial noutros locais autorizados”.

Tinha pouco mais de 15 anos. A acompanhá-la estava uma senhora mais velha. Mais tarde, numa das conversas que o caminho fertiliza, percebe-se que era uma ‘espécie’ de tutora da rapariga. Estavam as duas a fazer o caminho para fugirem ao DAESH. A jovem vinha sendo assediada há algum tempo para ingressar nas fileiras da guerrilha. A pressão começou a ser tanta que houve necessidade de ‘fugir’ por uns tempos. O Caminho de Santiago foi a resposta encontrada.

Teses Académicas

“Há pessoas que vão para o caminho sem terem noção nenhuma do que é o caminho”, diz António Devesa, um veterano nestas andanças. “No caminho não há títulos, as pessoas são todas iguais”.

A verdade é que, nos últimos anos, há muitos jovens entre os 20/30 anos a percorreram várias etapas porque “estão a fazer teses académicas”, em várias áreas, mas, sobretudo, ligadas às Ciências Sociais.

Numa delas, Flávia Borges da Silva e Carlos Pazos-Justo da UMinho registam as potencialidades que o Caminho de Santiago poderá ter “enquanto recurso didático no desenvolvimento das competências cultural e intercultural em contexto educativo”.

Para os investigadores, “o Caminho de Santiago tem adquirido uma dimensão cultural e identitária no contexto europeu” Por isso, através do Caminho de Santiago, desenharam “uma intervenção pedagógica onde o aluno pudesse procurar, conhecer, compreender e refletir sobre a herança cultural quer de Espanha, quer de Portugal, entendendo o fenómeno jacobeu como comum a ambos os países”.

Numa outra tese de doutoramento, intitulada ‘Os Caminhos Portugueses a Santiago de Compostela – O Património em Processo’, Leandro Gomes da Universidade de Coimbra diz, em jeito de síntese, que “o Caminho de Santiago pode ser compreendido e englobado na prática dos ‘Itinerários da Felicidade’, sendo um local de convergência ecuménica, cujas motivações, desejos e necessidades são diversas, e, em que, sobre estes níveis religioso e sobrenatural, há uma polissemia de traduções e interpretações”.

Estruturas

A ‘massificação’ do caminho trouxe, como consequência, o aumento de oferta em termos de infraestruturas de apoio aos peregrinos. “Já há, desde Lisboa, um conjunto de estruturas aceitáveis” reconhece António Devesa. “Estamos muito melhor do que há 10/15 anos e já podemos ser comparados a outros países”.

Onde os dois reconhecem que poderia haver melhorias era na sinalização: “há pormenores que devem ser acertados e poderia ser mais uniforme ao longo do Caminho”. A verdade é que a existência de companhias áreas de baixo custo deram um impulso enorme à visibilidade dos caminhos.

“No Aeroporto já se vê muita gente de mochilas às costas e vieira ao pescoço”.

“Sou agnóstico”. Foi uma das primeiras coisas que um cidadão português disse quando se juntou ao grupo à partida para a sua primeira caminhada a Santiago. Num caminho para todos, a condição religiosa não tem muito interesse, mas o que provoca diz muito da sua intensidade. Etapa após etapa, quem com ele convivia sentia existir alguma coisa. A chegada à catedral costuma acabar, para quem quiser, com a participação numa Eucaristia. Este homem, agnóstico, participou, também, pela primeira vez, numa Eucaristia. “Sou um agnóstico diferente”, disse no final e pouco antes de regressar a casa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *