Raparigas da província
No início desta história, o pai de Caithleen não está em casa, e percebe-se que isso é uma coisa boa. Ela acorda, levanta-se, fala com a mãe e com o empregado da quinta, parte para a escola. Apanha lilases para dar à professora, pelo caminho cruza-se com vizinhos com quem troca palavras dúbias, quase ao chegar a amiga Baba ultrapassa-a na sua bicicleta e arranca-lhe as flores das mãos, num perverso favor que retirará a Caithleen o prazer de receber os agradecimentos da professora ao oferecer-lhas. Percebemos logo que a crueldade é um elemento natural na vida destas raparigas.
Edna O’Brien, escritora irlandesa nascida em 1930 e quase desconhecida em Portugal, conta-nos no auto-biográfico Raparigas da província (Relógio d’Água, 2010) a história de duas adolescentes cujo sonho é deixarem a vilória onde nasceram, fugirem do convento onde prosseguem os estudos, em busca da vida livre e independente que só a grande cidade pode oferecer.
Publicado em 1960, este foi o primeiro livro de Edna O’Brien, e um escândalo tal na conservadora e católica Irlanda, que a sua venda foi proibida e muitos exemplares publicamente queimados. A razão foram as cenas sexuais explícitas e descritas com detalhe e inocente crueza pela protagonista, em fase de descoberta dos mistérios da vida, com os seus prazeres e espantos, expectativas e desilusões, mas também a abordagem de temas silenciados, como a pedofilia ou o aborto.
A força desta narrativa é enorme, de tal modo impressiva e depurada que o leitor sente no corpo as venturas e desventuras de uma rapariguinha cuja vida é atravessada pela crueldade e pela violência, pela pobreza e pela tragédia. Percebe-se que o livro tenha perturbado então, como perturba hoje: é desta matéria que se faz a verdadeira literatura.
Manuela Barreto Nunes [Bibliotecária]