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“Estudo das línguas clássicas é um verdadeiro antibiótico para combater a preguiça e a falta de disciplina”

As ideias pré-concebidas que se possam ter têm múltiplos fatores, e combatem-se com um conhecimento mais ‘sério’ ou profundo. Confesso que conhecia a Luciana Braga de outras paragens e conhecia de forma muito superficial.

Um conhecimento pré-concebido totalmente descabido e facilmente desmontado nesta entrevista. Natural de Lago e depois de um percurso que deveria ser na Psicologia e acaba no Latim, Luciana Braga acaba de traduzir, pela primeira, de latim para português, o “Tratado do Amor Verdadeiro”. Uma conversa para ler e reler. E acabar com ideias pré-concebidas.

Fale-me um bocadinho do seu percurso escolar. É natural de Amares? Estudou onde e em que área?
Sou natural de Amares e fiz todos os níveis de escolaridade, do 5.º até ao 12.º ano, nas duas escolas do concelho: na Escola E B 2, 3 de Amares e na Escola Secundária de Amares. Foi um percurso que se fez em conformidade com o que se espera de uma adolescente com uma curiosidade e interesse muito dispersos: no momento das grandes decisões (no 9.º e no 12.º) sempre vacilei um pouco. Eu nunca soube com muita certeza aquilo que eu queria ser ou fazer, mais tarde. E não foi por falta de entusiasmo ou de opções, pelo contrário, gostava de muitas coisas diferentes.
Ainda muito pequena, queria ser pianista, embora não tivesse muito jeito para tocar piano, depois interessei-me muito por vulcões, lia muito sobre eles, e decidi, com 7 anos, que seria vulcanóloga. Um pouco mais tarde, achei bem a possibilidade de ser professora de história ou de português, ou, em alternativa, ser pintora/artista plástica.
Quando tive verdadeiramente de escolher, no 9.º ano, foram precisamente estas duas últimas áreas que pus em confronto: as Ciências Sociais e Humanas e as Artes. Escolhi as Humanidades, ou se quisermos, as Ciências Sociais e Humanas. No 10.º, eu sabia que queria muito entrar na universidade, mas confesso que não sabia em que curso. No 12.º, continuava sem saber o curso universitário a que me devia candidatar.
Os resultados dos testes psicotécnicos e de orientação vocacional, que realizei para, na altura, me ajudar a resolver esta indefinição, convergiram num mesmo e unívoco sentido: as artes plásticas. O que não me deixou mais segura. Ainda que gostasse muito de Artes, duvidava de um futuro promissor nessa área. Mas num dia completamente aleatório, numa aula de História do 12.º ano, uma colega partilhou comigo a intenção que tinha de seguir Psicologia.
Até esse momento, eu nunca tinha considerado essa possibilidade, embora me interessasse muito pelo comportamento, emoções, e funcionamento da mente humana. Além disso, tinha o hábito de aconselhar as minhas amigas e pessoas próximas, zelando sempre pelo bem estar de cada um. A Psicologia foi, pois, a minha primeira e única opção no rol de possibilidades para ingressar na Universidade.

Até ao 12 ano, já tinha ideia que poderia seguir esta área?
O curioso, no meu percurso, é que no momento de transição do 9.º ano para o 10.º, o plano curricular do ensino secundário tinha sido severamente alterado. Em 2004, precisamente, fruto desta reforma, a disciplina trienal de latim, deixou de ser obrigatória no curso de Humanidades, que desde então, passou a designar-se Ciências Sociais e Humanas.
O Latim, era o “bicho-papão” dos alunos de Humanidades. Recordo-me bem de ouvir os alunos mais velhos dizerem que era a disciplina mais difícil e exigente de todas. O Latim estava para as Humanidades, como a Matemática paras as Ciências Tecnológicas. Portanto, quem queria evitar o curso de Ciências por causa da Matemática, teria sempre de debater-se com o Latim, nas Humanidades.
Acredito, por isso, que, até ali, as escolhas dos alunos eram mais genuínas, ou mais conformes com os seus desígnios, porque não podiam evitar um curso pela dificuldade de uma das suas disciplinas mais importantes. Confesso que o Latim, na altura, me intrigava particularmente, por imaginá-lo difícil, mas também porque não antecipava de que forma é que ele podia harmonizar-se com o meu percurso futuro. Não lhe reconhecia utilidade e valor. E isso deveu-se, em boa parte, à ausência da língua, mas também da cultura e da literatura clássicas durante o meu percurso escolar anterior.
Até ali, do grego, eu só conhecia as duas letras do alfabeto (alfa e beta), porque uma professora de português nos chamou, precisamente, à atenção para a palavra “alfabeto”, explicando-nos a origem da palavra. A forma como se construíam as palavras e como através dos seus elementos podíamos ser capazes de saber-lhes o significado sempre me interessou muito. Mas esse foi um momento raro, não sucederam momentos suficientes para que percebesse que as línguas clássicas e antigas tinham, ainda hoje, uma relevância muito grande.
Exigindo da minha memória, penso que só as aulas de História do ensino básico, é que me trouxeram luzes da cultura greco-romana. Mas não vejo, até ao ensino secundário, quaisquer vestígios do latim. O que me fazia pensar, claro, que se o latim não esteve presente no meu percurso escolar inicial, é porque ele não era pertinente. E já que era uma disciplina tão difícil, por receio, eu queria evitá-la.
Por isso, fiquei muito contente por saber que no preciso momento em que ia ingressar no 10.º ano, ele seria extinto do plano curricular do curso de Ciências Sociais e Humanas. Ali, fintei o latim.

Como se processou a entrada na Universidade e porquê esse curso?
Entrei na Universidade para cursar Psicologia, então ávida por conhecer melhor as interações e a mente humanas, desejosa de ter os instrumentos que me tornariam capaz de antecipar comportamentos, de ler emoções e de perscrutar os nossos lugares interiores mais obscuros e admiráveis.
No final do 12.º ano, estava convencida de que a Psicologia era o caminho certo, seguramente inebriada pelo seu lado “místico” e pela ideia de que através dela podia fazer a diferença na vida das pessoas. Mas este modo fantasioso de olhar a Psicologia, durou muito pouco. No final do 1.º ano, eu já tinha percebido para mim, que dificilmente completaria as minhas aspirações e vocação profissionais através deste curso.
No 1.º ano de Mestrado, mais certa do que queria fazer verdadeiramente e em que queria, de facto, usar o meu tempo e energia, suspendi este curso e, um ano depois, candidatei-me à Licenciatura de Estudos Portugueses e Lusófonos, na Universidade do Minho. Ali, já poucas dúvidas restavam. Queria ensinar, e deixei-me levar por aquilo que, embora de um certo modo latente, sempre esteve presente, que era ser professora de Português.
Eu sabia que no plano curricular do curso de Estudos Portugueses e Lusófonos, da Universidade do Minho, estava o latim. E creio que foi por sabê-lo que tive a certeza de que aquele, sim, seria o caminho certo. Não que eu imaginasse que o latim viria a ser presença assídua no meu percurso académico e científico-profissional. Mas sabia que as cadeiras de latim e de grego eram necessárias para que pudesse ensinar Português.
Costumo dizer que nem sempre somos bem-sucedidos nas fugas àquilo que evitamos, porque aquilo que evitámos um dia, acaba por vir atrás. E foi isto que efetivamente acabou por acontecer comigo. Se no 9.º ano tinha serenado o meu espírito quando soube que o latim tinha deixado de ser obrigatório, anos depois, volto a confrontá-lo. O mais curioso, é que as primeiras aulas das cadeiras de Introdução aos Estudos Clássicos e de Latim I foram as aulas que mais me marcaram, e de que tenho vivas memórias. Lembro-me de cada momento e de cada assunto da 1.ª aula de Introdução aos Estudos Clássicos.
A Professora Ana Lúcia, que é hoje a orientadora da minha tese de doutoramento, começou a aula com a seguinte pergunta à turma: “Que autores gregos ou romanos conhecem?”. Nenhum dos meus colegas sabia o nome de um único filósofo, matemático, ou dramaturgo grego ou latino. Lembro-me do espanto da Professora, e do meu também. Naquele momento desconfortável, nem eu me lembrava de nenhum nome, até que, com um esforço memorativo, recuperei o nome do cão do meu professor de Matemática do secundário: “Pitágoras”, disse-o em voz alta.
Creio que a Professora Ana Lúcia sentiu, aí, um certo alívio e a aula prosseguiu. Bem, eu levei aquele momento comigo para casa, e, então com mais maturidade, assumi a ausência das línguas, literaturas e culturas clássicas no meu percurso escolar, mas pior, no percurso de todos os meus colegas. Por isso, decidi que a partir daquele momento teria uma postura diferente em relação a esta área, e quis esforçar-me por pertencer aos poucos que se interessavam pelos Estudos Clássicos. A ideia de poucos se interessarem por este caminho, mostrou-me que eu devia tentar contrariar esta tendência e que devia dar uma oportunidade ao latim.
Rapidamente, as cadeiras de Latim e de Estudos Clássicos passaram a ser as minhas preferidas e aquelas a que me dediquei especialmente, durante os três anos de licenciatura. Mas, se me é consentido dizer, devo muito todo o gosto e conhecimento que hoje tenho pelo latim e pelo grego à Professora Ana Lúcia Curado, que tem pelas línguas clássicas uma admiração e respeito muito grandes, ensinando-as, como não poderia deixar de ser, de um modo muito disciplinado e delicado.
No 2.º ano de licenciatura já tinha, enfim, a certeza de que queria que o latim tivesse uma presença firme no resto meu percurso. Finda a licenciatura, não segui o mestrado em Educação e Ensino de Português, e candidatei-me a Doutoramento em Estudos da Cultura, com especialidade em Estudos Clássicos, no Instituto de Letras e de Ciências Humanas, da Universidade do Minho, com uma tese dedicada a um médico e filósofo judeu português, do século XVII, Fernando/Isaac Cardoso, que escreveu um longo tratado científico-filosófico, a «Philosophia Libera» (1673).
Uma obra com mais de 750 páginas, escritas totalmente em latim e que, até aos dias de hoje, nunca foi traduzida para nenhuma língua. Tenho, desde aquela 1.ª aula da licenciatura, este compromisso com as línguas clássicas: o de revalorizá-las, e de torná-las acessíveis à comunidade em geral, permitindo, ao mesmo tempo, que, através da sua tradução, o leitor comum tenha acesso a importantes obras e tratados antigos escritos originalmente em latim ou em grego.

Porquê traduzir o «Tratado do Amor Verdadeiro»? Qual a sua importância?
O «Tratado do Amor Verdadeiro» é precisamente um destes exemplos. É um pequeno tratado do século XIV, escrito em latim medieval e que carecia, até hoje, de uma tradução para português.
Este é, assim, o primeiro motivo com que justificamos a pertinência desta tradução: torná-la acessível ao leitor português comum, e permitir que, ao mesmo tempo, ele possa aceder à obra na língua em que originalmente foi escrita.
E é por isso que o Professor Sérgio Guimarães de Sousa (o arqueólogo desta descoberta e mentor deste projeto) e eu trazemos a público esta edição bilingue. Por outro lado, esta tradução, como muitas traduções e reedições de outras tantas obras, permite que este tratado raro se mantenha entre nós e que não se perca, por isso, no tempo e no espaço. Este é outro motivo.
Além disso, é um tratado muito importante para se perceber a lógica e a razão profundas do amor cortês, já que nos permite confirmar e explorar o conjunto de questões que sobrevoaram, no ocidente medieval e renascentista, esta temática tão pretendida nas cortes europeias e assaz desenvolvida nas composições galego-portuguesas e na poesia cortesã.
O manuscrito do «Tractatus de Vero Amore» foi encontrado, em 1936, na biblioteca de Erfurt, por um erudito italiano, Gerardo Bruni. Embora tivesse sido descoberto entre os opúsculos do teólogo Gil de Roma (1243/1247-1315), não é possível afirmar, com certeza, que ele é o autor deste livro. Aliás, é muito pouco provável que a sua autoria se deva a Egídio Romano (outro nome por que é conhecido, Gil de Roma), embora não seja impossível que um “doutor da Igreja” (recordo que estamos a falar do outrora arcebispo de Bourges) tenha tratado, de um modo tão íntimo, os assuntos do amor cortês. Este inédito anónimo do final do século XIV é, na verdade, um diálogo sobre a arte de saber amar, muito em voga na Idade Média, e que reúne em si, não só a dimensão sentimental, mas também erótica do amor.
Este pequeno guia medieval permite, ao fim e ao resto, que perscrutemos de perto a relação entre dois amantes. Não a de dois amantes comuns, mas aquela entre duas pessoas que se amam de verdade: por um lado, um cavaleiro que estima a sua dama, que sente por ela ciúme e uma dor acutilante quando não está na sua presença; por outro lado, uma dama reverente ao seu amado, que o guia espiritualmente até um estado mais nobre e próximo do divino, e o rememora constantemente para atenuar os efeitos da sua ausência.
Em boa verdade, este trabalho fez-se sem grandes dificuldades, e num curto espaço de tempo. Tive o privilégio e a sorte de ter sido desafiada pelo Professor Sérgio Guimarães de Sousa (do Instituto de Letras, da Universidade do Minho), para intervir nesta tradução. O Professor Sérgio é uma pessoa com uma capacidade de trabalho e de realização muito grandes. Foi, por isso, muito fácil empreendermos esta pequena labuta.
Num compasso disciplinado, traduzimos um capítulo por semana, em poucos meses. São 23 capítulos muito curtos e que se organizam bem ao estilo escolástico: é formulada, primeiro, uma questão meditativa, “Por que razão é que…?”, e depois vem a incisiva e profunda resposta, “É porque…”. Esta dinâmica permitiu-nos a nós, antes de mais leitores, e só depois tradutores, a intuir sem dificuldade as reflexões do autor. O latim, embora traga as sofisticações da época medieval, é de leitura muito acessível.
Por último, recordo que o “Tratado do Amor Verdadeiro” inaugura a coleção “TextosinProváveis” na Edições Húmus em parceria com o CEL, o Centro de Estudos Lusíadas, da Universidade do Minho. A receção e o estímulo da editora e do CEL a este trabalho também permitiram, não posso deixar de dizê-lo, que ele se fizesse e se publicasse sem dificuldade.

Quais são as “aflições, mas também as virtudes, daqueles que desejam e amam de verdade” expressas no livro?
Não elencarei todas, mas a leitura deste tratado do amor cortês permite-nos, de facto, reunir um conjunto vasto de aflições, mas também de virtudes, no coração e na relação daqueles que amam de verdade.
Aliás, de um amor verdadeiro, o que poderemos esperar senão, umas vezes, a realização das querias, ou dos desejos, dos amantes, e noutras vezes, as aflições que sobrevêm da não concretização das suas vontades mais profundas? Assim, quando falamos das virtudes expressas no livro, referimo-nos, justamente, aos momentos em que essas vontades são consentidas, por exemplo, quando o amante consegue aceder à sua amada, ora em presença, ora através da imaginação.
A inquietação, ou aflição, vem, quando o contrário se dá, a saber, quando a sua amada lhe parece inatingível. Este é, aliás, um dos tópicos do amor cortês: a inacessibilidade da amada. Visualizemos, por exemplo, os retratos das várias iluminuras medievais a este respeito: a amada, de cabelos longos e de rosto belo, no alto de uma torre, e o amado em baixo, de joelhos e espada à cinta, lançando-lhe, por ventura, palavras de amor.
Há outras aflições reveladas no “Tratado do Amor Verdadeiro”, e que decorrem, por exemplo, da ansiedade e da timidez do primeiro encontro entre os amantes, ou quando o amante imagina a sua amada com um outro homem.
Uma das virtudes do amor verdadeiro, e que o autor recupera, por exemplo, de Aristófanes e de Platão, é a união de dois corações, ou, se quisermos, a troca de corações, ou de almas, que se dá entre a amada e o amado: “A alma está mais verdadeiramente onde ama do que no corpo que anima” (pode ler-se no capítulo XIII do livro).

Se puder, e levantando um pouco o véu, que projetos tem no horizonte?
Como investigadora do Centro de Estudos Mirandinos (CEM), sediado em Amares, estou a preparar, juntamente com o Professor Sérgio Guimarães de Sousa e o Professor João Paulo Braga (da Universidade Católica), a edição da Obra Completa de Francisco de Sá de Miranda, que será publicada já no final deste mês de março. Também no âmbito do CEM, juntamente a Prof.ª Dr.ª Márcia Arruda Franco, uma verdadeira especialista mirandina, estamos a preparar a edição do primeiro dicionário mirandino, centrado no conjunto de personalidades que, de um modo, ou de outro, fizeram parte da vida e da obra de Francisco de Sá de Miranda.
Temos agendado, ainda no contexto do CEM, o Colóquio Internacional – “Repensar Sá de Miranda e o Renascimento”, que acontecerá nos dias 29 e 30 de abril, em formato digital, e que reunirá um conjunto vasto de autores, professores e investigadores que trarão, por certo, à discussão assuntos vários sobre o poeta da Quinta da Tapada, mas também do Renascimento, época em que viveu e em que viveram outros vultos de grande quilate e lustre da nossa história, cultura e literatura.

Como vê, atualmente, a implantação de línguas ditas clássicas no seio da sociedade? Ainda é um nicho de alguns?
Não nos dedicamos todos à aprendizagem de grego e de latim clássico, da mesma forma que nos dedicamos, por exemplo, ao domínio da língua inglesa, alemã ou outra contemporânea. Nem faria sentido, nos dias que correm, que privilegiássemos as línguas clássicas às línguas contemporâneas. O latim e o grego já tiveram, se quisermos ser pragmáticos, o seu tempo próprio.
O latim foi, durante muitos séculos, aquilo que é, hoje, o inglês: a língua-elo, que permitiu a comunicação e contacto entre as várias nações, e a língua da ciência, já que durante muito tempo todos os tratados de medicina, de anatomia, de filosofia, de botânica, e outros, foram escritos em latim. E daqui vem a importância e a razão pela qual ainda hoje é muito necessário que se saiba latim: o latim continua a ser uma língua-elo, mas que, agora, mais do que nunca, nos une ao passado.
Para que tenhamos acesso a todas estas obras que carecem, ainda, de uma tradução para as línguas contemporâneas, precisamos de continuar a estudar as línguas antigas e clássicas. É preciso que um conjunto de pessoas continue a especializar-se neste “nicho”, para que todas estas coisas do pretérito não se percam e façam ainda parte do nosso presente, e do nosso futuro.
É preciso que mais pessoas queiram aprender grego e latim, para que possam ler de um modo autónomo todo este longo conjunto de obras antigas, sem a, às vezes inevitável, “intromissão” de um ou mais tradutores. É preciso que, ao fim e ao resto, todos nos interessemos, pelo menos um pouco, pelas línguas e culturas clássicas. Uma língua morre quando deixa de servir os principais propósitos do ser humano-social: quando deixa de ser usada na comunicação oral e escrita, quando já não há vestígios dela nas línguas que sobrevieram.
Ora, o latim ainda é usado oralmente e na escrita e encontramos resquícios, mas também elementos latinos intactos no nosso vocabulário. São várias as expressões latinas a que recorremos, em diversos contextos, recordo as seguintes: a priori, sui generis, modus operandi, fecundação in vitro¸ delete, exit, carpe diem, homo sapiens, per capita, persona non grata. Não nos esqueçamos, também, do crescendo de termos técnico-científicos formados a partir das matrizes greco-latinas, como computador, que vem do verbo latino computare, que significa, “calcular, computar”, microbiologia, que composta por três elementos gregos quer dizer, “estudo” (-logia) da “vida” (-bio) de “pequenos seres” (micro-).
E constatemos, ainda, o comum e sempre atual interesse das marcas em atribuírem-se nomes latinos, veja-se o exemplo da Nivea, que significa “branco”, ou da Lego, que bebe inspiração no verbo latino, lego, legere, e que significa “juntar, unir”. Com estes curtos exemplos quero provar que, curiosamente, as línguas clássicas estão, até, bastante “implantadas” na nossa sociedade, no nosso dia-a-dia. Nós é que não lhes damos conta. E não lhes damos conta porque não temos, precisamente, conhecimentos básicos de latim e de grego.

Considera que deveriam ser mais alargadas à sociedade? De que forma?
A melhor forma de alargar as Línguas Clássicas à sociedade é tornando-as acessíveis. Quero dizer, o esforço deve ser feito no sentido de facilitar o acesso à sua aprendizagem. Para isso, é importante que se disponibilizem os meios necessários para que não se limite o ensino, neste caso, do Latim e do Grego, às escolas e universidades.
A boa notícia é que há já algumas instituições portuguesas muito empenhadas na dinamização das línguas clássicas, como a Associação Clenardvs, que disponibiliza cursos de curta duração (online), de latim e de grego, e de cultura, literatura e mitologia greco-romana.
Estes cursos – apraz-me dizê-lo – têm sido muito requeridos, o que significa que as pessoas, de qualquer área e faixa etária, têm muita curiosidade sobre as línguas e os assuntos da Antiguidade Clássica.
As expressões latinas, como as que enunciei, despertam, por norma, muita curiosidade: as pessoas querem entendê-las e querem saber novas para poderem usar no seu discurso. Há quem dê muita atenção aos vocábulos da nossa língua, procurando dissecá-los com um bisturi, para entendê-los sem ter de recorrer sempre a um dicionário. Saber grego e latim permite-nos intuir rapidamente sobre o significado das palavras (em português, mas também nas restantes línguas românicas).
Esta é uma das razões pelas quais o ensino do grego e do latim devia ter presença efetiva nos primeiros anos escolares. O estudo das línguas clássicas, pela complexidade das suas estruturas e pela prática e treino rigorosos que exigem para que sejam assimilados, é, se quisermos, um verdadeiro antibiótico para combater a preguiça e a falta de disciplina, pois ajuda os alunos a pensarem melhor, a estabelecerem raciocínios organizados e, por isso, mais corretos e coerentes, além de que terão menos dificuldades na interpretação e compreensão da sua língua materna.
Fora das escolas, a verdade é que, embora todos aqueles que queiram aprender latim e grego o possam fazer sem dificuldade, porque têm à disposição várias ofertas formativas, para que as línguas clássicas se possam estender à sociedade, para que um número largo e crescente de pessoas se interesse por este domínio, é necessário um esforço primário: é preciso repensar a sua importância e utilidade.
É preciso prostrar a ideia de que o latim é uma língua morta e, por isso, dispensável. E uso o seguinte argumento, que me foi mostrado, precisamente, pelo Professor Sérgio Guimarães de Sousa, o cotradutor do “Tratado do Amor Verdadeiro”, que em tempos partilhou comigo uma entrevista do jornal Expresso, feita, no final dos anos 80, a Savimbi, então líder da UNITA.
No meio do mato angolano, Savimbi obrigava os militares a estudarem latim. O jornalista, curioso, questionou o líder africano sobre esta excentricidade. Na sua resposta, muito sabiamente, Savimbi explicou que tinha necessidade de formar quadros da UNITA que viriam a ser representantes do movimento «Galo Negro», na Europa.
Ora, os quadros que ele formava sem saberem latim demoravam entre 5 a 6 anos a aprender as línguas dos países estrangeiros a que se destinavam, por outro lado, os que sabiam latim, ao fim de 6 meses, já falavam muito razoavelmente as suas línguas.

Finalmente, como se pode encontrar o livro?
O «Tratado do Amor Verdadeiro” já está disponível em várias livrarias. Pode ser encontrado na Livraria Almedina, na Livraria Centésima Página, na Bertrand Livreiros, na Wook, e na Distopia.

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