Cartas a um amigo que lê jornais#6
Com muito respeito à memória do padre Agostinho, de Rio Mau
Amigo, como estás?
Por cá tudo bem. Sabes uma coisa? Hoje, ao vasculhar uns papeis, encontrei um recorte do ‘Vilaverdense’ de 27de abril de 2001, no qual escrevi: “Páscoa na Ribeira do Neiva há 40 anos: O padre levava pistola”.
Deves lembrar-te de eu ter escrito esta crónica, a qual deu alguma celeuma. Morava eu a titulo de refúgio no lugar do Carreiro na Ermida, Rio Mau, quando me foi contada a história pelo pai da D. Rosa do café desta localidade.
O indivíduo principiou a contar assim:
Naquele tempo, havia uma casa aqui na zona da Ribeira Neiva que tinha sido construída em cima da linha divisória de duas freguesias: a do lado Norte e a do lado do Sul. Em virtude disso, havia a tradição da visita pascal ser feita à ‘Casa do Estremo’ pelo primeiro padre que chegasse à referida casa, a quem seria paga a côngura em dívida com a igreja. Acrescendo a isso o facto dos proprietários habitadores e senhores da referida casa serem muito abonados em bens e cabedais. Além dos citados direitos pagos à igreja, ainda davam chorudos folares em dinheiro aos párocos, o que despertava a sua cobiça, gerando-se assim grandes disputas entre párocos e fregueses das duas freguesias, na disputa entre si, por serem os primeiros a terem chegado a ‘Casa do Estremo’.
Com efeito, nos anos em que as duas cruzes chegassem ao mesmo tempo ao portelo de entrada da ‘Casa do Estremo’, gerava-se tão grandes chinfrim entre padres e paroquianos das duas freguesias, a que o gordo senhor de pé no pátio da escadaria de pedra de sua casa ria às gargalhadas vendo tal espetáculo.
É de há já 60 anos atrás a Páscoa a que nos reportamos e parece que se envolveram em grande luta padres e povo, armados de enxadas, foices, gadanhos e até se podiam ter ouvido tiros e foguetes.
Dissemos que naquele dia de Páscoa do ano de 1961 se podiam ter ouvido tiros e foguetes, simplesmente porque as duas cruzes se encontraram frente a frente no portelo de entrada da casa do ricaço. Aconteceu que o chinfrim gerado foi de tal monta, que um dos padres, o mais afoito, um rapagão ainda novo, arregaçou as saias (batina) e rápido como o vento aparece com uma arma empunhada, precisamente ao encontrar-se no portelo, barriga com barriga, com seu comparsa, passagem aonde só cabia um.
O caso agora apresenta-se mais bicudo. De facto, podia ter havido tiros caso não se tem ouvido a voz de trovão do ricaço da ‘Casa do Estremo’ a pôr termo à briga entre os dois sacerdotes, que continuavam entalados, barriga com barriga, um no outro. Então o ricaço ordenou: -Alto aí senhores padres! Eu já dei ordem ao feitor para pagar os direitos em dobro às igrejas das duas freguesias. Em vez de duas rasas e um almude de côngura, os senhores padres receberão duas rasas de milho e um almude de vinho cada um.
Dito isto, os ânimos serenaram e em seguida ouviu-se os padres gritarem em coro, ouvindo-se por toda a Ribeira do Neiva: – Viva o ricaço da Casa do Estremo! Viva! Viva!…
Ouvindo-se tão virtuosas palavras do ricaço, os foguetes, afinal, acabaram por estoirar ao mesmo tempo que padres e fregueses disseram alto e em bom som: Viva! Viva o senhor da ‘Casa do Estremo’! Viva! Viva!…
Caro amigo: queres saber como tudo isto acabou?
Eu digo-te: os rapazes das campainhas encostaram-se, costas com costas, cada um deles virado para a sua freguesia, iniciando um ensurdecedor tilintar para juntar os habitantes em dois grupos ao redor deles. Momentos passados, os mordomos empunhando as cruzes ao lado do seu pároco, seguidos pelo povo, seguiram estrada abaixo e estrada acima, em dois cortejos cantando: – Ela viu seu filho morto/Ressuscitou/Aleluia/Da Virgem Maria….
Eram duas a procissões do recolher da cruz nas freguesias.
Serra Nevada [Escritor]