Manuela Barreto NunesOPINIÃO

Épico de Gilgameš

Imagine-se uma civilização muito antiga, uma das primeiras da História da Humanidade, onde uma sociedade atingiu um tal grau de complexidade que se sentiu necessário fixar em suportes escritos a actividade do comércio, os impostos, os inventários dos bens dos palácios e dos templos. Recorrendo às matérias primas disponíveis na região (sensivelmente o actual Iraque), usou-se a argila para fazer pequenas tábuas, e inventou-se um sistema prático para nelas se inserirem símbolos, primeiro pictográficos, depois silábicos: estiletes com a ponta em forma de cunha, que penetravam facilmente na argila ainda mole, e com a suficiente rapidez para não a deixar secar. A arte final levava essas tabuinhas a secar definitivamente em fornos ou ao sol, uma técnica tão resistente que ainda hoje, mais de cinco milénios passados, sobrevivem aos milhares esses primeiros registos da escrita. Chamava-se Suméria este Estado, e a sua influência e prestígio cultural resistiram ao seu desaparecimento, mantendo-se durante milénios como a língua erudita usada nas cortes Acádias, Babilónias e Assírias.

Cedo se começou a ensinar a escrita e se verificou a sua utilidade para preservar e divulgar leis, preces, encantamentos, a observação dos astros, práticas e receitas médicas, poemas e histórias fundacionais, épicas de deuses e reis. O conhecimento transmitia-se, ensinava-se e preservava-se em bibliotecas. Chegaram assim até nós os fragmentos que contam o Épico de Gilgameš (Assírio & Alvim, 2017), grande rei e herói, semideus de cuja saga faz parte a primeira versão conhecida do dilúvio, mais tarde glosada no Velho Testamento. No livro, narrado, ao estilo do tempo, em forma poética, Gilgamesh vive inúmeras aventuras e enfrenta perigos imensos numa busca incessante pelo conhecimento. Mas nem sempre age correctamente: a certa altura da história quer obrigar os súbditos a construírem uma imensa muralha em volta da cidade de Uruk. Revoltados com o despotismo do rei, estes pedem a ajuda da deusa Ishtar, que manda um guerreiro forte e muito malandro em seu auxílio, Enkidu. Este desafia Gilgamesh e ambos travam violentos combates, que nenhum vence, acabando por se tornar amigos e grandes companheiros de aventuras.

O texto foi delicadamente traduzido numa edição crítica de Francisco Luís Parreira, e vale uma leitura de celebração e encantamento: pois que tudo nos podem tirar, mas o sonho não.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *