OPINIÃO

Cartas a um amigo que lê jornais#5

Amigo, hoje vou contar-te uma traquinice, muito perigosa, que me debilitou durante muitos meses.

Foi assim:

Os Borras, pai e filho, andavam a podar as ramadas da Quinta da Cadeia, na qual fui o único dos 10 filhos do João da Cadeia que aí nasceu.

A Augusta Ferreira, conhecida popularmente pela ‘Gusta Púcara’, como era habitual fazer todos os anos, apanhava e enfeixava a lenha da referida poda, a qual, depois de enfeixada, os molhos resultantes eram encostados na parede mais próxima.

Eu estava de férias do Natal e tinha ido para a quinta onde estava minha tia Diozinda, irmã de meu pai, única habitante da casa da quinta.

Foi esta minha tia quem me criou, a quem eu queria muito, assim como ela muito me queria.

Efetivamente, esta minha tia nunca regateou o amor que minha mãe nunca me deu… só Deus sabe se minha mãe teria razão para comigo assim proceder.

Ainda não tinha recuperado do exasperante choque sofrido pela partida de meu irmão Mário, imputado para terras do Brasil semanas antes pelo nosso pai. Eu era muito chegado ao Mário. Dias antes da sua partida, os dois debaixo de uma das figueiras da quinta caçámos felosas, ele de canhangulo empunhado e eu, como moço auxiliar, segurava dois frasquitos de vidro: um com pólvora e o outro com chumbo.

Naquele dia de má memória, em que este acidente aconteceu, a ‘Gusta Púcara’ encostou na parede do terreiro da cozinha dois ou três molhos de lenha, que os ‘Borras’ tinham acabado de podar na ramada do sítio.

Reparei então que um dos feixes era ornamentado por ramos de carvalho, com bugalhos ao dependuro. Movido pelo espírito de curiosidade, ripei dos ramos umas quatro daquelas bolas de cor castanha e foi sentar-me num banco junto da mesa que estava próxima da porta da cozinha.

Sobre a mesa estava uma faca de cozinha. Peguei-a e dei por mim com o seu bico a desmiolar um dos bugalhos colhidos. Foi quando a ideia de fazer explodir pólvora no bugalho desmiolado surgiu, a mesma ideia que fez com que a tragédia acontecesse.

Saltei do banco em que estava sentado, corri à sala de jantar e peguei o frasco da pólvora que, junto ao outro frasquito, foram colocados pelo Mário no aparador da sala de jantar.

No átrio do terreiro da cozinha existia um canteiro de flores, em forma de triângulo, onde estava colocado um nicho de pedra que, antes de estar naquele local, teria estado em outro sítio, servindo para nele ter estado chumbada uma prisão de ramada. Assim o denunciava a existência de uma cavidade entalhada no topo da pedra.

Esta cavidade redonda era um pouco mais larga e mais profunda do que o bugalha desmiolado.

Foi naquele buraquito que introduzi o referido bugalho sem miolo. Munido do já referido frasco da pólvora, dei consumação ao ato pensado e a tragédia aconteceu assim: cheio o bugalho de pólvora, cheguei-lhe lume com um pouco de caruma a arder que levara do fogo que ardia na pedra da lareira na cozinha. Poucos minutos depois deu-se a explosão. Para meu contentamento, um clarão subiu alguns metros nas alturas, iluminando o local.

A brincadeira foi repetida três vezes, ao fim das quais resolvi ver uma explosão com um clarão ainda maior a subir ainda mais alto. Voltei a deitar a pólvora no bugalho, que estava muito quietinho na referida cavidade da pedra. Conforme o bugalho ia recebendo a matéria explosiva eu, satisfeito e alegre, via a pólvora encher o bugalho até ás bordas.

Eis que de repente, sem que eu o esperasse, deu-se a tragédia: a pólvora explodiu e eu gritei:

-Ai minha tia! Eu estou cego… não vejo nada!

Sem nada ver, corri para a cozinha guiado somente pelo instinto e pelo conhecimento profundo que tinha do lugar em que se deu o acidente.

Horas do diabo meu amigo! Traquinice de criança que me podia ter debilitado por toda a vida. Não fiquei cego, felizmente, por obra e graça de S. Bento e da Senhora do Sameiro que se compadeceram de mim, ainda tão criança.

O bugalho, nas três anteriores explosões, ganhou brasa invisível na casca das bordas de que resultou o acidente. Minha tia escondeu de meus pais o acontecimento durante quase 15 dias, massajando-me o rosto com petróleo.

Passado todo esse tempo, fui levado ao consultório do Doutor Domingos Pereira que era em frente da ‘Casa dos da Cadeia’, no lugar do Bom Retiro.

Ao Senhor Doutor Domingos e à sua empregada, a Laurinda ‘Tabuinha’, cunhada da esposa do meu amigo Teixeira, proprietário da Gráfica Vilaverdense, devo o ter ficado com a cara sem marcas de ter sido queimada neste acidente, a quem estou eternamente grato.

Envio-te um abraço ao terminar esta carta.

 

Serra Nevada [Escritor]

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