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Duas vidas cruzadas pelo Mosteiro de Rendufe em Amares

Duas vidas com vivências no Mosteiro de Rendufe, em Amares. Uma foi criada dos caseiros da quinta, o outro é o filho dos caseiros. Histórias em espaço comum, mas com experiências diferentes. Primeiro Alice Barbosa, hoje, com 80 anos.

“Fui para lá servir tinha 12 anos, para o caseiro da D. Felisbela e estive lá atá aos 18 anos. O padre Bernardino tinha eu seis anos quando saiu de Rendufe e foi substituído pelo padre Simões”, começa no desfiar as memórias.

“Eu fui para lá como criada de servir, cavar árvores, a quinta tinha muitas oliveiras e aquilo dava muito trabalho. Eu ia lavar a roupa para um dos tanques”. Alice só esteve na escola até aos sete anos por ‘culpa’ da professora: “a minha mãe tinha mais dois filhos e a professora chamou-a, disse-lhe para me tirar de lá porque ‘os seus filhos é que precisam de escola’ e ela tirou-me”.

Aos 10 anos muda-se com a mãe para uma casa num terreno que era do pai e onde a avô construi uma casita. Aos 12 foi para os caseiros do Mosteiro e onde esteve até aos 18 anos.

Dormir no Mosteiro
Todo o dinheiro que Alice ganhava era para a mãe: “não via dinheiro nenhum era a minha mãe que ia buscá-lo aos caseiros para dar de comer ao meu irmão que não tinha. Aos 18 anos comecei a namorar e foi aí que ela disse que era preciso começar a juntar dinheiro”.

Dormia na casa do caseiro, por detrás da casa grande e que, agora, está ‘no chão’. As memórias de Alice dão conta de “quartos para toda a gente e eu dormia num deles. Era um quarto com duas camas e eu dormia com a mãe do meu patrão, tinha uma cozinha, um corredor comprido com quartos e ao fundo a casa de banho. Tinha dois quartos para por as batatas e outras coisas porque se era verdade que se trabalhava muito também se comia bem. Havia mais dois criados, e o quarto dos caseiros”.

A ‘casa grande’ de Felisbela só trás boas recordações a Alice: “era toda em madeira, andávamos lá a lavar de joelhos dias inteiros, o corredor tinha estátuas magnificas, vasos, tinha relógios, havia tanta riqueza, era muito bonita”.

A patroa fazia bicas e Alice ia levá-las à D. Felisbela. “Havia uma ligação entre as duas casas, abria-me a porta e ficava toda contente. Na parte de baixo da casa, de um lado eram a cuba de vinha e os lagares e do outro lado era para as frutas”.

Do marido de Felisbela restam poucas recordações, “acabou numa casa para pessoas com problemas mentais”, já da dona “eu adorava a senhora até porque sempre me tratou bem. Era muito poupada, mas dava muita coisas que a quinta produzia. Foi com ela que vi pela primeira vez o mar porque não tínhamos dinheiro para essas coisas. Ela trazia-me sempre um ‘pão podre’, um bolo muito bom”.

Queda do Mosteiro
Uma das lembranças mais vivas de Alice é a queda do Mosteiro: “estava a fazer a ceia, uma sopa de couve galegas e feijão, ouvi um estrondo muito grande e o senhor padre e as irmãs a chamar pelo senhor Francisco a dizer que o Mosteiro tinha caído. Eu vim cá fora e só vi poeira no ar e o teto no chão.

O pai de Alice tocava órgão no Mosteiro e andava sempre nas cerimónias religiosos. Depois dos 18 anos, Alice casou-se, e foi viver com a mãe. O marido aos 24 anos foi para França, “eu fiquei com a minha mãe, e um ano depois veio-me buscar. A minha vida foi mais lá do que cá. Levei um filho com cinco anos e uma filha com cinco meses e tive lá mais quatro filhos”.

O filho dos caseiros

Avelino Xavier Silva, 73 anos, é o filho dos caseiros que durante nove anos governaram toda a quinta. Foi para lá aos cinco anos, vindos de S. Vicente do Bico. “Andei na quinta a chamar o gado, a obrar, na apanha da azeitona, aquilo dava muito azeite, havia o olival à entrada que ia até ao varandão. Ao chegar ao varandão, havia um muro que dividia o olival da cerca. Esse muro seguia, por baixo do varandão em direção ao último portão da quinta em S. Vicente, chamamos por detrás do muro”.

Antes de ir para a escola, às cinco da manhã, já andava atrás do gado depois às oito comia qualquer coisa e ia para a escola.

Havia a chamada punção, os direitos que se pagavam em medidas, milho, feijão, vinho (era em terços), eram cerca de 16 carros de milho. Portanto, era tudo pago em cereais, “inclusive os meus pais recebiam o salário assim. Depois, eles iam vender o que sobrava para ter algum dinheiro para fazerem face às despesas, ia para a feira à quarta. Tudo se vendia, até figos”.

“Os meus pais saíram de lá em 1959, ano em que a D. Felisbela faleceu… o meu pai ainda ia ao varandão guardar os cereais, sobretudo, quando chovia. Eles quando vieram embora já tinham 60 e tal anos e compraram uma casita ali próximo”.

Foram os filhos de Felisbela que ficaram a tomar conta. Carlos Malheiro que era casado e tinha um filho e a filha da D. Felisbela, a Mariazinha que era solteira. Depois começaram a vender bens que lá existiam: “os meus pais chegaram a comprar uma salgadeira, que era utilizada no recibo para deitar o azeite”. Depois o Eulálio da Fonseca comprou e vendeu ao atual proprietário, o Pedrosa.

Reconstrução
Avelino tem ainda recordações da reconstrução do Mosteiro: “foi feita por um encarregado, um tal de Moreira e nós tínhamos um empregado o João Sancho, não se davam um com o outro e andavam sempre a discutir”.

As memórias voltam para o famoso muro dividia a cerca do lavradio, “próximo das terras novas”, onde havia uma cancela que já não existe, chamada da cancela dos porcos, e onde existiam diversas pias para os porcos, nos tempos dos frades, irem lá comer.

Já os caçadores eram os ‘preferidos’ de Avelino: “eu ia apanhar os tordos e eles davam-me dinheiro. Junto às oliveiras era um tiroteio enorme porque havia muitos tordos”.

Os pais de Avelino, também, estavam encarregados de vender muito do que a quinta produzia: “o vinho era vendido para Palmeira que era transportado pelo meu pai e ao filho dela chegamos a levar vinho, azeite e lenha.

Mosteiro
Se hoje o Mosteiro “está impecável”, nem sempre foi assim. “Quando caiu, o que vinham ali fazer era meter um lacre em gesso nas fissuras para irem avaliando se aquilo ia cedendo. Na altura, só se fez a reconstrução do teto. Falta muita coisa que existia, como a torre velha onde havia uns pesos do relógio. No órgão tinha cornetas que desapareceram. Na torre velha havia muitas corujas. O João Sancho era um fanático pelos sinos, comprava tinta para pintar a madeira e as abraçadeiras dos sinos”. Hoje nada disso existe.

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